Pintura sempre

Menino do Rio, Gonçalo vive em Paris desde 1999. Quando volta à sua cidade é para rever amigos, visitar a família. Prefere o retiro do seu ateliê em Teresópolis. No Brasil ou na França, não importa, sua rotina é sempre a mesma: fica rondando a pintura, cercado de uma profusão de tubos de tintas, pincéis, telas, papéis de várias qualidades, obras acabadas, outras em andamento, algumas penduradas, outras encostadas às paredes. Sobre as mesas estão aquelas com as quais está trabalhando. Dezenas de vidros, latas, copinhos plásticos e tampas contendo pigmentos estão ao alcance da mão. Tudo é plural e meticulosamente organizado segundo suas necessidades. Esse ambiente, que é tradicionalmente o do pintor, é o seu domínio. Por ali se movimenta, sem pressa. Nesse vai e vem, revê anotações, prepara tintas, retoma experimentos, faz a sua alquimia. Com o estímulo da música, começa a misturar cores, cortar tiras, pedaços de pano e papel. O antes da pintura, esse acercamento, já é criação.

Com gestos precisos Gonçalo aplica as primeiras camadas de tinta sobre um longo tecido estendido na horizontal. Longe da Baía de Guanabara, dela guardou a luminosidade. Nada do que viu depois turvou sua paleta. Não teme a intensidade da luz tropical, ao contrário, é dela que tira a reverberação, o lusco fusco, a dissolução e os contrastes. Diria que sua pintura é atmosférica porque afeta à visão da paisagem natural ou construída. A escala cromática das aquarelas e dos óleos vai dos puros saturados e intensos aos tons esmaecidos e glaucos, raramente descendo aos sombrios. De preferência, usa cores contrastantes. Mesmo quando trabalha com tons pálidos como nas têmperas da série Prière, a mais recente, não parece ser a luz fria do hemisfério norte que dá o tom. A suavidade dos azuis aquosos ponteados de dourado, os amarelos pálidos aquecidos com toques de laranja, os verdes ácidos instigados pelo lilás, todo esse jogo de cores moventes, evoca o amanhecer de um dia de verão no Rio de Janeiro quando a luz filtra através da névoa pousada sobre o mar. A pintura de Gonçalo Ivo recorda a cidade, a vegetação, águas rasas e profundas, bandeiras ancestrais, muros, pisos, tecidos antigos, sem nunca ser descritiva. Essencialmente retiniana, é também estimulante ao tato. Diante de seus quadros, o olhar seduzido pela cor tateia a superfície pintada na ânsia de captar as nuances que as texturas promovem. Esse estímulo vem da paciente colagem de papéis e fitas sobre a tela e das muitas camadas de tinta que acrescenta. É uma pintura que se constrói sobre o terreno da tradição pictórica, com técnicas artesanais adquiridas ao longo de anos de prática e experimentação. Gonçalo se formou arquiteto. Em seus trabalhos há um arcabouço; uma estrutura de sustentação, linhas, tramas que como andaimes, ou guias, seguram a composição.

No final da década de 1970, quando começou a pintar com regularidade, a pintura já havia tido sua morte anunciada. Persistiu, porém. Sua intenção não era representativa, nem abstratizante. Aliás, essa polarização não ocupava mais as cabeças pensantes, na época, voltadas para a arte conceitual. Seu interesse declarado foi e é a sensação produzida pela cor. A propósito da percepção do mundo pela cor, lembro de ter lido em algum lugar que Matisse perguntado sobre a uma de suas famosas “odaliscas”, teria dito algo como: não pinto a mulher, pinto o verão no sul da França. Admirador de pintores como Volpi, Maria Leontina e Ione Saldanha, Gonçalo não precisou sair do Brasil para encontrar seus mestres. Saiu para mostrar o que sabe fazer e fazer o que sabe.

Maria Alice Milliet | setembro, 2007

Historiadora da arte, curadora, autora dos livros: Lygia Clark - Obra-Trajeto,
Tiradentes - O Corpo do Herói, Lothar Charoux - A Poética da Linha

 

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